terça-feira, 28 de agosto de 2012

Início de uma buchada nas tripos antropomofágicas

Pois é, a turma não era muito sutil na época dos aztecas não. Nem aqui no Brasil. O fato e´ que inventavam estas coisas de oferendas aos deuses e tratavam de se locupletar nos mais gordinhos.

Como se pode ver os chefs estão começando a receita da buchada

Outras tribos do continente, principalmente as brasileiras, gostavam de alguma coisa menos heavy, como lombo, o que incluia os glúteos, as cochas e os inter-costais. Os braços também são apreciados, principalmente quando de jovenzinhas ainda impúberes.
Aquele manto de gordura situado à região da cintura e que compõe o volume de bacon que vão desde a barriga até o costado é considerada por alguns como a melhor parte do sujeito, quero dizer, da oferenda.
Para que os deuses não fiquem infelizes, um número maior de vítimas são ofertadas, o que termina determinando uma sobra muito grande de mantas de toucinho para a felicidade dos burocratas da igreja.
Quando bate estas  iguarias lá em casa, comemos como explendidas linguiças feitas da carne e da banha das oferendas, além do restante, que degustamos como magnífico torresmo.
Os sacerdoter produzem também uma aguardente de cevada que não tem nada a ver com a cerveja que produzem por aqui.

Buchada de Bode


Buchada de bode, ou simplesmente buchada, é um prato típico da região nordeste, feito com miúdos, rins, figado e vísceras do bode lavadas, aferventadas, cortadas, temperadas e cozidas em bolsas (que medem cerca de 8 cm de diametro) feitas com o próprio estômago do animal. 
Buchada de Bode
— Eca, argghh, cuspe, carai, vei! Você ficou maluco?
Horácio me olhou surpreendido.
— Ué, você tem alguma coisa contra?
— Ficou doido? Eu não como este treco, nem que a vaca tussa.
— Por quê, algum preconceito?
O canto da minha boca subiu em um sorriso irônico.
— Nada contra o bode, a não ser o sovaco dele. Mas não como miúdos.
Horácio pensou um pouco.
— Então, vai um mocotó?
— Eca, lá vem você de novo.
— E um joelho de porco?
— Para com isso, cara. Você só vem com coisa nojentinha.
— E um Eisbein, você topa?
— O que isso?
— Um prato alemão.
Me senti um pouco mais seguro.
— Então eu topo.
Esperamos até quarta-feira e fomos num restaurante lá no centro, que só tinha quatro mesas, e uma fila gigantesca para entrar. Resmunguei um pouco, mas topei esperar.
Ao final, valeu a pena. O prato era magnífico.
Eisbein

— Valeu, Horácio, gostei!
Ele sorriu e me convidou para outra curtida.
— Semana que vem, vou lhe levar para comer um Haggis.
— O que é isso?
— Um prato escocês.
Achei que fazia bem o meu gênero.
— Eu topo.
E de novo, achei um barato.
Chegando em casa, e ainda arrotando o Haggis, fiquei curioso.
— Vem cá, Horácio, do que é feito esse prato?
Horácio pareceu se lembrar de alguma coisa.
— Já lhe respondo, Karl. Mas me lembrei que tenho que pegar uma encomenda na portaria.
— Tudo bem — e me sentei, empantufado, no sofá.
Dali a pouco, o telefone tocou.
— Alô?
— Karl, aqui é o Horácio.
— Algum problema?
— Sabe o Eisbein que você comeu na semana passada?
— Sim?
— Era joelho de porco.
O meu estômago contraiu um tiquinho.
— Porra, você me fez comer aquela droga!
— Você bem que gostou.
Meu estômago contraiu mais um pouco.
— E hoje? O que era aquele prato escocês?
— Buchada de bode.
Tive que sair correndo para o banheiro.

sábado, 25 de agosto de 2012

Pela nudez da Psicanálise


Eu sempre fui embatucado com este negócio de setting terapêutico. Começa por este nome patético, meio rempli de soi-même, que tenta representar o protocolo da relação entre o analista e o paciente. 
Babaquice, tudo isso. O setting é uma cerca que separa o analista de seus pacientes. Uma forma dele esconder suas fraquezas dos que vieram entregar suas almas para ele (Eca, que treco piegas!).
O analista tem que descer ao nível do paciente, ficar tão nú quanto ele. 
Assim eu aderi à técnica proposta por Sarah White, que atende peladinha da silva. Cobra 450 dólares a consulta, coisa que só consegue porque é gostosa. Claro que no meu caso os preços tiveram que ser mais condizentes com a minha barba.

http://sarahwhitelive.com

Dei um pouco de azar nos primeiros atendimentos porque o pessoal que veio saiu correndo quando atendi a porta.
Mas depois veio uma velhinha que achou a idéia excitante e espalhou para as amigas.
Confesso que estou empolgado. O próximo passo vai ser um divã alargado, onde eu também caiba, junto com o paciente.
Ainda não sei como é que vou resolver isso para terapia em grupo. Estou tendendo a adotar variantes neste caso. Assim, num dia, só um paciente fica pelado. Na sessão seguinte, todos ficam pelados menos um paciente. Noutra, só eu fico vestido. E por último, só eu fico pelado.
Cardápio variado. Espero que agrade a todos.


sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Prezado Dr. Karl


Doutor Karl, enviuvei tem quinze dias, e estou me sentindo muito só. Isto já me aconteceu três vezes. Acontece que o meu saudoso e último marido ganhou na mega sena logo antes de sua morte  e assim, eu estou só e milionária. Eu já era um pouquinho rica, mas agora rebentei a boca do balão.
Não sei se vou aguentar muito tempo esta solidão, porque sou uma mulher muito afetiva e preciso de uma presença masculina bastante, digamos assim, carnal.
O que devo fazer?
ass. Viuvinha de de São João do Mato Dentro
p.s. Mando minha foto em anexo. O senhor vai ver que sou adepta da burca, mas gosto de usá-la bem curtinha. Ah, e olha só o presentinho que comprei para me consolar da minha perda.



Viuvinha,  seu luto foi bastante rápido, eu diria, quase que instantâneo. 
Impressionante, né? Pela foto, você ainda tem bastante caldo, e muito amor para dar. Sugiro que saia dando este amor todo por aí. Como sugestão, troque a sua alcunha para Viúva Negra, Tentação Maldita, Jararaca da Noite, ou qualquer coisa do gênero. Mas fique bem longe de mim, por favor, porque sou pobre e ainda quero viver bastante.
Do sempre seu (oops, sempre seu porra nenhuma!)


quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O cozinheiro de Buda


— Prazer, Ashytanga Yamachaka.
O carinha, de olho puxado, estava de bermuda, havaianas e a reboque do Horácio.
— Que interessante. Você é polonês?
Horácio estranhou.
— Que que é isso, cara. Não vê que ele tem olho puxado? — E apontou para o china — Ele é a reencarnação de um auxiliar do próprio Buda.  
Fiz cara de desdém.
— Era o quê, o cozinheiro dele? — Estiquei o queixo para ele — e tem mais, não tinha que estar com aqueles panos cor de abóbora, não?
O china parou de dar uma de bobo e fechou a cara. Mas não me impressionei.
Pra mim, é esquizofrenia, golpe ou paspalhice.
Horácio tentou melhorar as coisas. Virou-se para o china e disse.
— Olha aqui, Ashy, ele é assim mesmo, tá?
Ashy? Já está íntimo é?
Horácio me deu um olhar furibundo, agarrou o braço do reencarnado, e se mandaram.
Meu estômago roncou e olhei o relógio. Hora de almoçar.
Lá longe, Horácio e seu novo amigo caminhavam.
— Será que esse Ashytanga Yamachaka cozinhava bem mesmo?
Dei uma pensada, e decidi que não.
— Estes malucos vivem de prana. Prefiro a buchada do português.


segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Psicanalista de Madame


O Horácio não gostou quando lhe disse que ia colocar uma placa no hall do edifício.
— Isto aqui é um prédio residencial, e não há possibilidade de colocar nada na portaria.
Au contraire. Eu tenho o direito disto. A minha profissão é legal, e nada me impede de exercê-la em casa.
— Começa que o seu diploma é fajuto. Depois, eu não quero e o apartamento é meu.
Mein Gott!  E a liberdade de expressão onde é que fica? E a livre iniciativa?
— Não vai botar e está acabado — e se mandou.
É claro que eu botei.



De noite, quando chegou, estava soltando labaredas.
— Tudo bem de você colocar a placa, mas Psicanalista de Madame? Ficou maluco?
— Uai, eu tenho uma tendência hetero, você sabe.
— Claro que eu sei. A testosterona vaza pelos seus ouvidos.
— E daí que eu só quero mesmo é madame.
— Ficou doido? Você tem que tratar de todo mundo!
Eu não queria discussões e então topei trocar a placa.



Dia seguinte, a mesma estória.
— Porra, Malak, você ficou maluco?
— Eu? Porque?
— Psican-ANAL-ista?
— É.
— Como assim, é?
— Tudo acaba lá.
— O quê?
— Psicanálise, comida, temperamento, ansiedade, retenção, pão-durice, desejos inconscientes…
— Engraçadinho. Pois você vai mudá-la.
— Esta coisa está me saindo a maior grana. — E lá fui eu trocar a placa novamente.



— Não entendi nada.
— Lá vem você de novo. Se não entendeu nada, não pode reclamar.
— O que é que está escrito ali?
Psicanalista, em russo.
— Então, qual é o sentido?
Era tão óbvio.
— Meu caro amigo, é que nem a Psicanálise.
Frente a seu olhar de bobo, completei, entediado.
— Sentido, Horácio. Não tem sentido algum.
E a placa ficou.

sábado, 18 de agosto de 2012

Sent from my iPad


Acho o máximo esta frescurinha do Sent from my iPad. Primeiro, pensei que fossem as pessoas, mas depois vi que era a maquininha que fazia.
Hoje de manhã eu estava na praia quando chegou uma gostosona e pediu para rachar o banco.
Topei, é claro.
Ela se sentou, sacou um iPad, se ajeitou lindinha e começou a navegar.
Deu uns toquinhos, pincelou com o dedo pra lá e pra cá, deu umas risadinhas e depois começou a a ver suas mensagens.
Olhei de través, e só consegui ver um Sent from my iPad. Devia ser mensagem de outra gostosa.
Perguntei se ela me emprestava, disse que não. Perguntei se queria dar um mergulho comigo, balançou a cabeça. Perguntei se queria que eu passasse o meu protetor nela, se levantou quase deixando cair tudo e se mandou. 
Dane-se.
Fiquei pensando em usar um iPad nas sessões. Será que os pacientes vão curtir?
Sei lá. Mas eu vou, porque se alguém começar com chatisse, dou uns toquinhos também, pincelo e vou surfar na internet.


sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Larica dá câncer


Pelos barulhos, ruídos, miados e xingamentos do Horácio, a madrugada foi agitada.
De manhã, quando as coisas pareciam melhores, fui acordado no entanto por um palavrão em especial do meu amigo, que é o pior palavrão que eu conheço.
— Bundicação bundica!
Levantei e sai correndo, pois alguma coisa horrorosa devia estar acontecendo.
De início, não entendi nada. Horácio estava sentado na cama com aquele ser felinento no colo e, ao lado, o seu violão com o braço completamente mastigado.
— Não sei o que foi que houve. Durante a madrugada Cassius começou a miar mais forte e eu o tirei da gaveta, para ver se a crise de ontem tinha melhorado. Mas ele escapou de meu colo e fugiu para a cozinha. Comeu tudo o que tinha na terrina dele, e começou a arranhar a porta da geladeira.
Horácio estava cada vez mais agitado.
— Fiz a besteira de abrir a geladeira e o Cassius pulou lá dentro e atacou um pacote de salsicha zerado. Eu o agarrei e tirei de lá. — Enquanto ele falava olhei para o gato e senti que havia algo de estranho, mas não me dei conta do que era. Horácio continuou. — Como já tinha estragado com as salsichas resolvi dar uma para ele. Comeu feito desesperado e exigiu outra, e mais outra até acabar a embalagem.
Suspirou e suspendeu a cabeça do gato. Só aí é que eu entendi o que estava errado.
— Ele está com um fio de aço na boca!
Horácio abanou a mão.
— Espera que eu te conto. Tirei o Cassius de lá e o tranquei no quarto. Mas com os barulhos terríveis que ele estava fazendo e como parecia que ele estava mexendo no violão, voltei aqui e encontrei este desastre!
Apontei para o gato.
— Mas que fio de aço é este?
— Ele comeu uma corda do violão. E agora vou ter que levá-lo para o veterinário.
— Tudo bem, eu te aguardo…
E o barquinho vai… ou será que é a tardinha que vai?

Desci no Bunda de Fora que é o boteco aqui de baixo, tomei uma média com pão e manteiga, comprei jornal e fui fazer a melhor coisa do dia. Ou melhor, as duas coisas.
Com o início de manhã devidamente resolvido, achei que já podia pensar na praia, mas as coisas não iriam ser assim tão fáceis.
— Karl!
Nossa, lá vem o cara de novo. Será que mataram o Cassius?
Mas não. O felino estava ótimo, já sem fio de aço e aparentemente nenhuma cicatriz ou sequela.
Já o Horácio, era outra estória. O cara estava acabado.
— O que foi, caramba?
— O Cassius está com câncer!
— Como câncer? Ele está bonzinho, olha. 
Será que tiraram o arame pela frente ou por trás? — Decidi que não era hora de perguntar isto para o Horácio. 
— E eu nunca ouvi falar que larica desse câncer…
— Larica?
Ele estava tão abalado, que eu resolvi contar.
— Ele comeu — e neste instante eu resolvi dar uma refrescada — um pouquinho de maconha que eu tinha.
Horácio titubeou, botou o gato no sofá e abriu um envelope que estava trazendo.
— Olha aqui o câncer! — E apontou para uma setinha numa radiografia.



— É, estou vendo que é o Cassius. E com o arame ainda dentro.
Horácio apontou.
— Olha pra setinha. Tá vendo o que ela aponta?
— Hum… — sempre achei radiografia um negócio difícil de entender — o quê? Essa mancha branca aqui?
— É.
Desdenhei da coisa.
— Mas é um nadica de nada.
Horácio insistiu.
— Veja. Bordas pouco definidas, a mancha demonstrando maior densidade do corpo suspeito…
— Porra, você tá falando bonito, hem, Horácio!
Horácio não conseguiu segurar e soltou um riso. Mas logo a cara de desconsolo voltou enquanto contemplava triste o Cassius, que aliás não estava nem aí.
— Um câncer.
— De merda. Não tem nem o tamanho de um arroz. Daqueles miudinhos. Nem de longe um Tio João da vida. Vai ver que nem dá para operar.
Cassius tinha descido do sofá e estava vindo pra cima de mim.
Horácio deu de ombros.
— É. O veterinário disse pra ficar observando.
Cassius se chegou e ficou roçando nas minhas pernas.
 Esse gato nunca foi disso.
Dei um tapinha no ombro do Horácio.
— Vai, esquece. Vai ver que é nada. — Fiz um cafuné no bichano.
Caráio, véio, a situação aqui tá séria pra cacête!

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O gato bolado

Sabe aquele negócio de repente, instantâneo?
Pois é, foi um negócio desses com o Cassius, o gato do Horácio. Foi no batente, no abrir de porta da primeira vez em seu apartamento. O bichano desinfeliz me viu, encrespou as costas e se eriçou todo, manifestando os seus sentimentos.
RISSSSSHHHH!
Não posso lhe tirar a razão, porque odiei aquele monte de pelos alergênicos com dois olhos azuis e malignos, também instantaneamente.
— O nome dele é Cassius.
— Está anotado. E anota você que o único cara no mundo que teria o direito de se chamar Cassius era o Clay, e inda assim ele mudou para Mohamed Ali.
Pois bem entrei, a vida seguiu do jeito que já se sabe, comigo evitando pensar que aquela besta-fera existia, até que um dia o Horácio veio me pedir socorro.
— Ainda bem que você chegou, Karl. Você tem que me ajudar a tirar o Cassius de dentro do armário!
— Hem?
Um miado pungente nos interrompeu, e viramos ambos a cabeça para o quarto.
— Que é que houve? Você estripou ele? — E dei uma casquinada (risadinha baixa e seca, se é que você já não sabe).
Acho que Horácio não gostou, e veio logo com acusações.
— Aposto que foi alguma coisa que você fez com ele.
— Eu? A gente se evita desde o primeiro dia e, pelo menos nisso, o nosso relacionamento tem dado certo.
— Mas ele está parecendo maluco, agarrado literalmente com unhas e dentes às paredes da gaveta e não quer sair de lá de jeito nenhum.
Fomos lá olhar.
— É, parece que ele endoidou mesmo. Será que é convulsão?
— Karl, você nunca viu convulsão não?
Olhei de novo para o felino, em diagonal na gaveta. Estava de barriga para cima e com as unhas firmemente cravadas nas laterais.
RISSSSSHHHH!
Dei um pulo pra trás.
— Chama um exorcista.
Horácio nem respondeu, e eu insisti.
— Chama um padre ou um pai-de-santo, porque isso aí é incorporação, com certeza.
Horácio se afastou um pouco e me olhou em dúvida.
— Sério, o que é que você acha que ele tem?
— Ou é bad trip ou nó nas tripas.
— Porra, será que ele tomou o meu anti-depressivo?
— Sei lá. Por via das dúvidas, fecha a gaveta e deixa ele enlatado até amanhã de manhã.
Dito e feito. Ficou só um miadinho que Horácio resolveu que dava pra aguentar.


Mas, sabe da tal da pulga atrás da orelha? Pois é, fiquei assim.
Fui até o quarto, subi na cadeira e olhei em cima do armário. O saco plástico onde guardava o haxixe estava com um pequeno rasgo. Do lado de fora, uma bolota meio comida. 
Gato filho-da-mãe. Bad trip pra você, garotão. Tomara que a sua viagem seja horrível e você veja muitas ratazanas com três vezes o seu tamanho.
Voltei pra sala. Cassius continuava miando. Olhei para Horácio e sorri solidariamente.
Só quero ver quando vier a larica.


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Quintus Horatius Flaccus


Não dá para evitar. Mais de um dia com o Horácio e suas manias de organização, já me levam à irritação incontida. Pois foi assim que começou o problema, pois ele tinha que ir lá bisbilhotar e ver se eu estava mesmo guardando a roupa.
Eu estava desarrumando a mala, no segundo dia de Rio, o que para mim é cedo ainda, mas para Horácio é o cúmulo da zona, quando ele viu as bolotas de haxixe. Acho que ele nunca viu isto na vida, e me perguntou o que era.
— Ahmm, hum, quer dizer — e resolvi inventar uma estória — são balinhas de açucar de beterraba, feitas no Cazaquistão.
— Oba, me dá uma — e estendeu a mão.
Dei-lhe uma palmada na mão.
— Nada disto! É para as visitas. — Já pensou se ele mastiga um bagulho desses?
Horácio não pareceu muito conformado, mas sugeriu logo:
— Então vamos botar num potinho lá na sala.
Gelei.
— De jeito nenhum. É tudo meu.
— Mas não pode ficar aqui no quarto. Pode dar formiga.
Porra, quando é que vou ter que explicar para esse cara que Papai Noel adora receber esse tipo de presente?
— Não se preocupe Horácio. Eu cuido disso.
Ele saiu meio emburrado, e foi para a sala. Tratei de esconder a muamba em cima do armário.

Dali a pouco, fui para a sala. Ele ficou me olhando da poltrona.
— Quero uma daquelas balinhas. Quero ver se é verdade o que você está falando.
— Claro que é!
— Não acredito. Me dá uma para chupar.
Acendeu a luz vermelha.
Ele vai ficar enchendo o saco até eu dar uma.
Resolvi mudar imediatamente de assunto.
— Quintus Horatius Flaccus.
— Hem?
— Você podia se chamar assim, em vez deste seu nome esquisito.
— Esquisito como?
— Esse Kahn. Horácio Kahn. Absurdo.
— Porque? Alguma coisa contra os judeus?
— Contra judeus, nunca. Mas contra ignorantes, sim.
Ele se empertigou.
— Que estória é essa?
— Tinha de ser Khan. K-H-A-N. Khan.
— Mas é K-A-H-N.
— Teu pai.
— Meu pai, o quê?
— Ignorante. Não sabia soletrar. Errou no cartório, e você se ferrou.
Ficou fulo da vida.
— Minha família é K-A-H-N, há gerações!
— Gerações de ignorância.
Horácio ficou roxo e se trancou no quarto.
Hehehe, funcionou.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Enfim, a Cidade Maravilhosa!


Para não ficar enchendo o ouvido de incautos, digo logo que cheguei estropiado, mas cheguei ao Rio de Janeiro. Tomei o frescão do aeroporto do Galeão até o Santos Dumont, já disposto a enfrentar a raça de motoristas de taxi que ficam esperando os otários ali na saída.
— Leme.
— Leme, onde?
Esses mequetrefes ficam inventando questão onde não existe.
— O Leme é grande pra cacête, né? — Fui empurrando a mala pra cima dele. — Depois eu lhe digo.
Quase desabando sob a minha bagagem mulambenta, lá veio ele com outra.
— O doutor quer ir pelo caminho mais curto?
Gracinha de cara.
— Qual?
— Pelo túnel Santa Bárbara.
— Hum, deixa eu ver. — Botei a mão no queixo e olhei para cima. — Será que dá para ver a esta altura que eu também estou de sacanagem?
Olhei de volta para ele.
— Você quer dizer pegar a Praça Mauá, a Candelária, a Presidente Vargas e seguir até a saída para o Túnel? — Soltei o meu sorriso mais cínico. — Será que pelo túnel Paulo de Frontin não fica mais rápido não?
O cara murchou. Saiu carregando a mala para o bagageiro do táxi, enquanto resmungava.
— Então por que é que não disse que queria ir pelo Aterro logo?



— Cento e cinquenta reais.
Fiquei roxo.
— Cento e cinquenta pra vir do Santos Dumont até a Gustavo Sampaio? Ficou maluco?
O motorista se virou para mim com cara de agora-te-peguei, estendeu a mão e repetiu.
— Cento e cinquenta merréis. — Merréis é a moeda carioca. Quando era cruzeiro, carioca falava merreís. Na época do cruzado, a moeda do carioca era merréis. E quando virou Real, continuou sendo merréis. Só quando é muita grana é que vira contos.  Por exemplo, dois mil merréis vale dois contos, sacou?
— Esquece. Pode seguir para a delegacia. Vamos discutir isso lá.
O cara não se fez de rogado e arrancou.
Me deu medo dos meganhas quererem abrir a minha mala. Só mania de perseguição mesmo. Não conseguia imaginar o que é que os caras poderiam encontrar lá. Talvez só os duzentos dólares de haxixe que eu comprei no aeroporto de Bucareste. Mas quem vai dar bola pra isto, né?
Mas terminou que o taxista só deu a volta na quadra e voltou para a mesma esquina.
Estendeu a mão de novo.
— Então, só cinquenta reais.
— Só pago quinze.
— Trinta.
— Dezesseis e cinquenta.
Aí eu acho que o cara ficou meio puto, porque foi lá atrás, jogou a minha mala na rua, me arrancou do táxi e se mandou.
Tentei cantarolar a Garota de Ipanema, mas não me lembrei de porra nenhuma.
 Não tem a menor importância — e adentrei na portaria.

domingo, 12 de agosto de 2012

Querida Senhora


Querida senhora Petroniska:
Antes de mais nada, gostaria de lhe dizer que estou num vôo Lisboa-Rio, e que as coisas não estão muito boas por aqui.
Já estamos sobre o Atlântico — se a senhora não sabe o que é isto, é um rio enorme que fica entre o país dos portugas e o meu, Terra Brasilis — e está quebrando o maior pau.


Não, não é um galho grande. É uma tempestade bestial. Bestial de ruim, e não de boa, como dizem os portugas.
Eu estou me sentindo muito mal e…
KABUM!
Acabou de cair um raio no avião. E eu estou muito enjoado.
Muuuiiiiito.


Eca! Estou reescrevendo tudo de novo, porque houve um pequeno desastre aqui.
Mas a enfermeira, digo, a comissária, veio aqui e mesmo com a maior cara de nojo resolveu as coisas. Foi bom, porque os dois passageiros meus vizinhos se mandaram e agora tenho mais espaço.
O que é que eu queria lhe dizer mesmo?
Ah. Sabe aquele salaminho que eu lhe encomendei? Dá para mandar por DHL para mim? Mande a pagar que o meu amigo Horácio resolve.
Sempre seu,
Karl Malak



sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Eu mato esta Gorda!


Quando as coisas estão muito bem, eu garanto que elas vão piorar!
Eu estava feliz com o bilhete da TAP na mão. E ele ainda era para as seis da tarde o que me daria tempo de resolver minhas coisas.
Daí resolvi juntar os meus parcos caraminguás num baú desmelinguento onde teriam de caber minhas roupas — poucas — meus livros, e minhas panelas. Lembrei inclusive de guardar o meu bandolim, sem o qual não seria nada nas jam sections do Leblon.
Mas não é que já apavorado pela falta de tempo, me surge a Baby Rubi querendo de todo jeito um atendimento?
Não adiantou explicar a ela que eu ia embora e que não ia mais atendê-la. Ela abriu sua bolsa e sacou quatrocentos dólares.
— Eu pago isto pela consulta!
Rico sempre lhe corrompe, né? Quatrocentos doláres ia me dar uma vida boa pelo menos pelas próximas 72 horas que eram o tempo de chegar no Rio. Topei.
E a gorda se estirou no recamiê e começou a disparar uma algarávia que não entendi nada. 
Lá pelas tantas perguntei se ela se importava se eu continuasse a arrumar as minhas coisas e ela fez um sinal com a mão enquanto continuava a falar sem interrupção. Assumi que sim, que topava. E continuei tranquilo.
Tudo pronto, fui lá encerrar a sessão e acho que ela não entendeu.
— Mas como! A gente só está começando.
— Rubi, tem uma coisa essencial sobre a relação terapeuta-paciente que você ainda não conhece. É muito forte. Quer ver?
Ela assenti. Disse-lhe que relaxasse e esticasse o pescoço, respirando fundo.
— Fecha os olhinhos. — Fui até carinhoso com ela.
E fiz o que eu chamo de manipulação fono-respiratória. Ou seja, parti para o estrangulamento.
— Baby, o que mais de essencial eu posso ensinar a você em nossa relação é a extrema proximidade entre a vida e a morte. Chama-se Morte por Asfixia.

Quando vi que Baby estava próxima do entendimento final do que eu estava demonstrando, relaxei e a ajudei a se levantar.
Com ela aparentemente recuperada, apesar da tosse de cachorro, repeti a pergunta.
— Compreendeu a relação mais próxima que um terapeuta pode manter com um paciente?
Baby Rubi ainda segurando o pescoço assentiu, e tratou de sair de fininho.
Vi-a lá fora, meia tonta. Quase que pegou o táxi que já me esperava, mas dei um grito, e se mandou apressada. Pensei em lhe recomendar um xarope para a faringite, mas deixei passar.
Joguei tudo dentro do carro e nos mandamos para o Aeroporto de Otopeni.
Na estrada, tentei assoviar a Garota de Ipanema mas não lembrava de porra nenhuma.
Pensando bem, já não tinha a menor importância.

Mudança de Planos


Vou para o Brasil!
Recebi um telegrama do Horácio dizendo que posso ir na loja da TAP pegar uma passagem para o Brasil. Uma escala em Lisboa, e vamu-qui-vamu!
Contou-me que poderei ficar hospedado em seu apartamento na Nossa Senhora de Copacabana. Com a minha pensão de anistiado e a possibilidade de dar aulas na UFRJ, não tenho porque ficar dependendo de gordas e militares em Bucareste.
Depois eu conto mais.

p.s. Por que telegrama? Porque não tenho telefone, pombas!

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Surpresas na Embaixada


A embaixada me chamou antes do que eu esperava. Fui até lá crente que ia receber o meu passaporte, mas vieram com exigências como atestado de bons antecedentes, cartas de referência e outras impossibilidades.
Pedi para falar com o embaixador, mas o máximo que permitiram foi uma conversa com um segundo secretário de merda, que não ficou muito impressionado com as minhas ameaças de espalhar na internet que a embaixada não queria repatriar um antigo perseguido político.
O secretariozinho,  acho que para não deixar o seu rabo na reta, terminou por chamar o Cônsul.
No final, terminamos acertando os três que a única exigência que vou atender vai ser a da fotografia, porque sem isto não dá para sair passaporte, né?
O cônsul bancou o engraçadinho e me perguntou se o meu interesse de voltar para o Brasil estava ligado à pensão de perseguido político a qual eu teria direito.
Tomei um susto.
— Pensão? Que pensão? Quanto? Fiquei rico?
O melhor é que eu nem tinha ideia desta moleza!
Ele me disse que provavelmente eu teria direito a algo entre cinco a seis mil reais. Fiz a conta para leus, e deu uma fortuna.
— Claro que não! Como é que o senhor acha que eu possa estar interessado nesta questão comezinha? — E completei com uma pérola. — Sou até capaz de doar a pensão para a caridade…
O Cônsul olhou para mim com cara de vômito.
Será que ele está pensando que sou um pústula, ou um aproveitador do tipo?
— Não, nada disto! Só estou com saudades da Pátria.
Saudades, claro. Conta outra.

p.s. Só estava querendo este passaporte por questões de imunidade, mas este lance da grana é formidável.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Macumba-lele-ai-ai!


Apareceu mais um cliente. Foi bom, porque os trezentos e tantos leus do militar já estavam no final. Terminei por só comer batatas cozidas com sal e um pouco de um óleo que o meu vizinho me deu e do qual não quero pensar na origem. A verdade é que parecia óleo de trator.
É uma paciente já idosa e que diz ser brasileira. O sotaque dela é meio esquisito, parecendo de um carioca alemão. Dá para entender?
Se eu disser que ela é obesa, estou sendo delicado. Tem alguma coisa em torno de um metro e sessenta e deve pesar uns cento e quarenta quilos. Disse-me que o seu nome é Baby Rubi.
Quando eu disse que ninguém se chama Baby, ela tirou as calcinhas pela cabeça.
— Mas eu me chamo assim!
— Impossível. Ninguém se chama de Baby. Isto pode ser um apelido, ironia, chalaça, mas nome que é nome, certamente que não.
A mulher estava reclinada no divã, mas com a minha afirmativa, deu um pulo e botou o dedão na minha cara.
— Está querendo levar um sopapo?
Como eu estava a fim dos 600 leus que pensava em lhe tomar, e não queria tomar uma surra, tratei de recuar.
— Não. Não, em absoluto! Acredito piamente que a senhora se chama mesmo Baby. Até porque tem a Baby Consuelo, o Baby Pignatari e, afinal de contas, por que é que não poderia haver alguma Baby Rubi, né?
A senhora, que devia ter lá os seus oitenta e oito anos, se acalmou, e resolveu me contar a sua história. Para resumir, ela é a Bruxa daquela conversa do João e Maria, e alega que é inocente. Diz que foi enrolada pelos dois.
Afinal, eu a interrompi.
— Lamento, mas sua consulta está encerrada.
A dona Baby, como gostava de ser chamada, tirou um relógio do bolso e conferiu.
— Mas não tem nem uma hora de sessão!
— É mas tem, vejamos, cinquenta e dois minutos que já começou. — E antes que ela pudesse esticar a conversa, estendi a mão. — São seiscentos leus, se me faz o favor.
Sabe aquelas bolsinhas de brocado com aquela trave cruzada em cima? Pois bem, não é que a dona Baby puxou uma velha e xexelenta de dentro de suas saias e futucou até conseguir os 600 leus?
Mas era dinheiro. E eu peguei antes que ela se arrependesse.
— É bom que esta consulta funcione, porque senão…
Não entendi nada. Como é que alguém pode querer que uma consulta de psicanálise funcione?
Quase que lhe disse que nem quinhentas funcionam, mas não vou ferrar com o meu ganha-pão assim, né?
Vou mais é tomar um banho de sal grosso, e macumba-lele-ai-ai!


domingo, 5 de agosto de 2012

Os pacientes começam a retornar


Na sexta, já tive dois pacientes. Um deles é novo, mas o outro, de longa data. Quando eu atendi a porta, tomei um susto vendo um militar.
— Doutor Karl?
— Sim? — O fato do cara estar fardado, me assustou, mas o uso do doutor foi um fator tranquilizante.
— Não está me reconhecendo?
— Não tenho a menor idéia de quem é o senhor.
— Nem tendo me atendido por três anos?
Olhei bem para o cara, mas continuei sem a menor idéia de quem era. Tive que esclarecer a minha situação.
— O senhor sabe por onde estive nos últimos cinco anos? — Perguntei.
— Sei. Na cadeia, preso por ter acertado o Marechal Florin num duelo de pistolas.
— É, mas foi só um tiro em seu glúteo esquerdo. Não tenho culpa se ele gastou a sua única bala e depois se virou para fugir. O Marechal poderia ter morrido de uma forma mais digna, com um tiro no peito ou na barriga. Além do mais, nunca vi alguém morrer por causa de um tiro na bunda.
Olhei para o cara e fui logo para a questão.
— Quer uma consulta ou veio me prender?
— Consulta.
— Então entra.
Resulta que o cara estava querendo sair do armário mas não estava com coragem para enfrentar os seus companheiros de arma.
Na hora encrenquei com a estória dos companheiros de armas.
Será que eles ficam lutando espada no escuro? — Mas resolvi não aprofundar a questão e deixei que continuasse.
Fiquei de lero-lero com o cara para ver se ele se identificava, mas não disse o seu nome, e nem eu perguntei.
— Quanto foi?
— Duzentos dólares.
O cara ficou meio branco. Eu tentei melhorar.
— Paga em leu. — Para quem não sabe, leu é o plural de lei, que é a moeda romena.
— Então, é quanto?
— Hum… Oitocentos leus.
Ficou mais branco ainda.
— Não tenho.
— Quanto é que você tem?
Contou na carteira e fez olhar de bunda.
— Trezentos e trinta e sete.
— Serve — e estendi a mão.
Foi-se. E eu, depois de cinquenta minutos de sessão, confesso que não me senti muito culpado de ainda não ter a menor idéia de quem era o cara.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Minha vida com Horácio Kahn


Acho inexplicável esta minha dependência do Horácio, apesar dele se queixar de que a coisa acontece exatamente ao contrário.
No entanto, desde os tempos de UnB, e nós entramos lá em 1967, quando nos conhecemos nas reuniões do diretório, passando pela luta clandestina, até a nossa estada de quatro anos na Romênia, eu sempre precisei de levar o Horácio tal como uma mochila em minhas andanças.
Tudo bem. Não é sempre que me sinto assim. Sei que sou um símbolo para o meu amigo, e o paradigma do que ele quer ser na vida. Mas esta sensação de precisar do Horácio é recorrente.
A minha necessidade imperativa de elogios é óbvia, e considero o Horácio a minha claque particular.
Hoje, ao nos ver ainda vivendo juntos, como dois sessentões irremediavelmente solteiros, e o que é pior, heterossexuais, fico me perguntando se nós compomos os dois lados de uma única moeda.
O fato é que o Horácio é um saco, mas não consigo viver sem ele. O fato dele estar no Brasil agora é um alívio e uma ausência.
Acho que preciso dele para implicar.

p.s. O Horácio é viúvo. A sua amada Nadja faleceu prematuramente. Mas isto é uma outra estória.